A Disciplina da Vida Obediente

A Disciplina da Vida Obediente

Por Vanessa Belmonte

É normal ao final de cada ano fazermos um balanço das coisas que aconteceram, do que fizemos e do que queríamos ter feito e não conseguimos. Isso, geralmente, nos motiva a traçar novos planos para o novo ano e criamos expectativas de que, desta vez, vamos conseguir.

Em meio a tudo isso, um elemento comum se destaca: a disciplina. Crescemos nas coisas em que tivemos disciplina para nos engajar em um processo indispensável. E abandonamos as coisas em que não tivemos a disciplina necessária para continuar.

Isso acontece com o desejo de ter uma vida mais saudável, que leva a um processo de cuidados alimentares e exercícios físicos diários. Com o desejo de aprender algo novo, que leva a um processo de aulas, exercícios e treinamentos constantes. E com o desejo de desenvolver uma vida devocional, que leva a um processo de engajamento com as atividades de oração, leitura da Palavra, estudo e meditação frequentes.

Para fazer essas coisas, precisamos deixar de fazer muitas outras. E até termos alguns resultados, precisamos persistir na repetição.

Tudo isso precisa de disciplina, isto é, uma organização do que precisa ser feito (geralmente, são coisas que não temos o costume de fazer) e uma constância na execução de hábitos diários (que, por isso, vão gerar um esforço para serem feitos), ao longo de um período de tempo (médio a longo prazo).

Se fazemos algo esporadicamente, sem o cuidado da repetição diária, somos muito mais propensos a desistir. Nos cansamos do esforço necessário para criar um novo hábito e não vemos os resultados esperados no dia seguinte.

Como diz James Smith, “a formação de virtudes requer prática, e não existe prática que não seja repetitiva. Abraçamos a repetição de bom grado, como algo positivo, em todos os outros setores da vida: para aprimorar nossa tacada no golfe, nossa destreza no piano e nossas habilidades matemáticas, por exemplo. Se o Senhor soberano nos criou como criaturas de hábitos, porque pensaríamos que a repetição é prejudicial ao nosso crescimento espiritual?” (1)

Nesta reflexão, quero chamar sua atenção para a necessidade de você aprender sobre o processo necessário para seu crescimento espiritual. Um processo que inclui coisas que você precisa fazer (e outras que precisa deixar de fazer), práticas às quais você precisa se dedicar e hábitos que você precisa formar, para alcançar o resultado almejado. Um processo que leva tempo (a sua vida inteira) e vai exigir muita dedicação e esforço. Por isso, também precisa de disciplina.

As palavras discipulado e disciplina são uma só - isso sempre me fascinou. A partir do momento em que escolhemos dizer: ‘sim, quero seguir Jesus’, a pergunta é: ‘que disciplinas me ajudarão a permanecer fiel a essa escolha?’. Se pretendemos ser discípulos de Jesus, precisamos ter uma vida disciplinada.” — Henri Nouwen (2)

Crescimento espiritual

Talvez esse adjetivo ‘espiritual’ faça você pensar em coisas bem distantes da realidade atual, o céu e a vida eterna que ainda virão. Mas esse crescimento recebe o nome ‘espiritual’ por envolver um aprendizado específico: sermos guiados pelo Espírito de Deus e discernirmos sua voz, como consequência, obedecê-lo e sermos transformados à medida que o conhecemos mais. Reflete um relacionamento com Deus, no qual vamos nos tornando cada vez mais semelhantes a Jesus.

Esse processo acontece agora, em meio à nossa vida diária, cheia de aspectos bem concretos relacionados ao trabalho, escolhas, relacionamentos, cuidados com a casa, o corpo, a vida pública, a comunidade e a igreja. Esse aprendizado se desenvolve no momento presente em nossa vida ordinária, enquanto ‘Cristo está sendo formado em nós’ (Gálatas 4:19).

É um processo que se desenvolve ao longo do tempo e ao qual precisamos nos dedicar todos os dias. Paulo diz em Gálatas 5:16-17, “deixem que o Espírito guie sua vida. Assim, não satisfarão os anseios de sua natureza humana. A natureza humana deseja fazer exatamente o oposto do que o Espírito quer, e o Espírito nos impele na direção contrária àquela desejada pela natureza humana. Essas duas forças se confrontam o tempo todo, de modo que vocês não têm liberdade de pôr em prática o que intentam fazer.

Como vamos aprender a ser guiados pelo Espírito?

Para isso, precisamos ser ensinados por Jesus, enquanto desenvolvemos um relacionamento real com ele: ‘deixem que eu lhes ensine’ (Mateus 1:29b). E uma vez que aprendemos a viver pelo Espírito, vamos poder seguir a direção do Espírito em todas as áreas de nossa vida presente (Gálatas 5:25).

Neste contexto, as disciplinas espirituais são exercícios que vão nos ajudar nesse treinamento que é realizado e conduzido pelo próprio Deus ao longo do tempo de nossa vida.

Você pode chamar essas atividades de ‘disciplinas espirituais’, mas eu prefiro chamá-las de ‘exercícios de treinamento para a alma’. — James Bryan Smith (3)

Então, se você tem interesse em desenvolver sua vida devocional, isto é, aquele tempo intencional de encontro com Deus em sua vida diária, que tantas vezes você diz que gostaria de melhorar, precisa se engajar com um processo no qual o próprio Deus te conduz, através dos recursos que ele preparou, os quais Jesus também usou e nos ensinou a usar para desenvolver uma vida de devoção (2 Pedro 1:3).

Oração, meditação na Palavra, solitude, silêncio, jejum, simplicidade, estudo, adoração, serviço e submissão, entre outras, são, portanto, partes essenciais do processo de formação espiritual. As disciplinas são ações que visam fortalecer nosso relacionamento com Deus e criam o espaço necessário para que ele manifeste sua presença para nós.

Apesar de Jesus ter forte consciência da presença de Deus com ele ao longo de tudo o que ele fazia, ele se ‘retirava para lugares isolados, a fim de orar’ (Lucas 5:16). Quanto mais nós, tão distraídos com tantas coisas, precisamos também nos ‘retirar’ em momentos específicos do nosso dia para buscarmos a Deus através das disciplinas espirituais. E fazermos isso de maneira constante.

Exercícios de Treinamento

Como um atleta que se esforça em seu treinamento, todos nós precisamos de exercícios, práticas e hábitos, que nos auxiliem a vencer limitações internas e obstáculos externos para que possamos viver como discípulos de Jesus. Fazemos isso para nos submeter à transformação real operada pelo Espírito Santo em nós, que não acontece por mágica ou osmose. Paulo diz que nós também nos esforçamos e nos disciplinamos para esse processo se desenvolver em nós (1 Coríntios 9:24-27).

Fazemos isso, porque através destes recursos que o próprio Deus provê a nós, vamos conhecendo mais sua vontade e crescendo em sabedoria e entendimento espiritual. Sua palavra vai se tornando mais doce a cada dia, sua voz mais suave, sua vontade mais conhecida, sua presença mais amada. Então, passamos a viver de modo a honrar e agradar ao Senhor, dando todo tipo de bom fruto e aprendendo a confiar em Deus cada vez mais (Colossenses 1:9-10).

Não são práticas exteriores vazias, que tendem a levar a um legalismo, são movimentos de um relacionamento pessoal guiado pelo Espírito Santo, tornados possíveis a partir de nossas escolhas diárias.

"O Espírito Santo posiciona-se ao nosso lado, dentro de nós e ao nosso redor quando nos engajamos em exercícios espirituais. Cada exercício não teria valor algum se não fosse por obra do Espírito Santo. Quando abrimos e lemos a Bíblia, concentrando nossa atenção em Deus, o Espírito ilumina nossa mente. Quando oramos, não oramos sozinhos. O Espírito nos inspira a orar, ora conosco e em nosso benefício". — James Bryan Smith (4)

Exercícios para treinar a atenção

Assim, pense nas disciplinas espirituais como exercícios que vão criar o espaço necessário na sua vida agitada, em meio aos muitos ruídos à sua volta e dentro de você, para você prestar atenção em Deus. Nós estamos o tempo todo prestando atenção nas demandas à nossa volta. Essas demandas geram preocupações e deixam nossa mente e nosso coração ocupados com pensamentos e sentimentos diversos.

Por exemplo, pense num dia normal de trabalho, em meio a todas essas ocupações e preocupações. Se seu filho de 2 anos te chama, você tende a dar uma resposta automática, porque sua atenção está nas diversas demandas à sua frente e você não quer se desconcentrar do que está fazendo. E o mesmo acontece com Deus: você vai ficando cada vez mais ‘surdo’ para a voz do Espírito de Deus, porque não quer parar o que está fazendo para se concentrar em ouvir a sua voz. Especialmente em meio à correria, não vai sobrar tempo para ler a Bíblia e orar depois que você fizer todas as outras coisas mais urgentes. Assim, essas atividades devocionais vão se tornando cada vez mais escassas ou passam a ser feitas de modo automático.

Para Henri Nouwen, ao vivermos uma vida cheia de preocupações, nos rodeamos de tanto distúrbio exterior que fica difícil ouvir de verdade a voz de Deus. Por vezes, queremos uma direção ou resposta, mas estamos sempre ocupados demais para parar com todas as demandas. Ou quando paramos, o distúrbio interior continua. Assim, nos tornamos surdos, por isso, nossa vida se tornou absurda. Na palavra ‘absurdo’ encontramos a palavra em latim ‘surdus’. A vida espiritual exige disciplina, porque precisamos aprender a ouvir a Deus, que está sempre falando e a quem raramente damos ouvido. (5)

Quando aprendemos a ouvir, nos tornamos obedientes. A palavra obediente vem do latim ‘audire’ que significa ouvir. A disciplina espiritual é necessária para a lenta jornada da vida absurda para a vida obediente, da vida cheia de ruídos de preocupações para uma vida na qual haja espaço interior disponível para ouvir a Deus e seguir sua orientação.

A vida de Jesus foi uma vida de obediência, porque ele estava sempre atento à voz do Pai, sempre alerta à sua direção. E Jesus quer nos ensinar a viver como ele, nos transformando no processo. O que você pode fazer para prestar mais atenção no que Jesus quer te ensinar?

Incluir as Disciplinas Espirituais em sua rotina

Você pode ser mais intencional em incluir momentos onde vai prestar mais atenção em Deus (em sua voz, sua direção, seus ensinos…) e, em humildade, deixar o Espírito Santo te conduzir nesse processo, te ensinando, confrontando, encorajando e transformando.

Este é o segredo de uma vida devocional viva e edificante: a comunhão com Deus.

A comunhão com Deus envolve ter momentos em seu dia onde você encontra com ele, isto é, você para as demais coisas que está fazendo para se relacionar com ele: conversando, compartilhando o que está sentido e o que está acontecendo e se esforçando para ouvir o que ele quer te dizer, tendo consciência de que ele te vê. Assim como faz (ou deveria fazer) com todas as suas demais relações.

Não é possível desenvolver uma amizade verdadeira se você não tiver tempo para ligar para seus amigos, encontrar com eles, e quando estiver com eles, prestar atenção no que eles estão te dizendo, se envolver com o que eles estão vivendo e estar presente para eles. O mesmo vai acontecer com sua família (marido, esposa e filhos), com os irmãos da igreja e todos os relacionamentos que forem importantes para você.

Você precisa, em algum momento do seu dia, estar presente para eles e prestar atenção neles. Deixando de focar sua atenção no trabalho, nas preocupações do que tem que fazer, nas notícias e distrações das redes sociais. Isso também precisa de disciplina.

A disciplina de deixar o celular no silencioso (e longe de você) durante as refeições ou todas as noites quando estiver com sua família. A disciplina de ter momentos a sós com seu marido ou esposa. A disciplina de proteger alguns dias da semana para encontrar com os amigos e conversar com eles. A disciplina de ir ao culto todos os domingos e encontrar com frequência com os irmãos. A disciplina de se aquietar para estar a sós com Deus todas as manhãs.

E, nestes momentos devocionais, então, você vai exercitar sua atenção para prestar mais atenção em Deus e conseguir acalmar os muitos ruídos e preocupações, através das disciplinas espirituais. Você pode aprender mais sobre elas neste site onde eu comento melhor cada uma delas. Mas aqui fica uma sugestão: comece devagar pelas disciplinas mais básicas da meditação na leitura da Bíblia e oração.

Pratique as disciplinas com humildade e reverência. Reconheça o privilégio que é ser conhecido por Deus e poder se aquietar diante de sua presença (por mais assustador que isso seja ao mesmo tempo), sendo ensinado por Jesus a viver cada dia com ele. Precisamos de humildade para reconhecer que não sabemos como viver e buscar a Cristo por orientação. Cultive o desejo de conhecer mais a Deus e amá-lo mais. Busque por intimidade e anseie pelo encontro com ele. Deus também está pronto e desejoso de se fazer conhecido por você.

“Minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem.” João 10:27

“Amo os que me amam; os que me procuram por certo me encontrarão. (…) Por isso, meus filhos, ouçam-me, pois todos que seguem meus caminhos são felizes. Ouçam minha instrução e sejam sábios; não a desprezem. Felizes os que me ouvem, que ficam à minha porta todos os dias, esperando por mim na entrada de minha casa! Pois quem me encontra, encontra vida e recebe o favor do Senhor.” Provérbios 8:17, 32-35 

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Referências citadas no texto:

(1) James K. A. Smith. Você é aquilo que ama. São Paulo: Editora Vida Nova, 2017, p. 116.

(2) Henri Nouwen. Uma espiritualidade do viver. São Paulo: Editora Vida, 2018, p. 19-20.

(3) James Bryan Smith. O maravilhoso e bom Deus. São Paulo: Editora Vida, 2010, p. 31.

(4) James Bryan Smith. O maravilhoso e bom Deus. São Paulo: Editora Vida, 2010, p. 35.

(5) Henri Nouwen. Renovando todas as coisas. Retirado do livro: Clássicos Devocionais (org. Richard Foster). São Paulo: Editora Vida, 2009.

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Vanessa Belmonte
é professora, worker do L’Abri Brasil, coordenadora dos cursos online da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2). Autora do livro "O Lugar da Espera na Vida Cristã". É casada com Glaucio e faz parte da Igreja Esperança em Belo Horizonte, MG.

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Fonte: Cultivar e Guardar

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